quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Tic-Tac

Corria seus dedos finos,compridos e muito marcados sobre as velhas teclas empoeiradas, sentia em cada nota o cheiro nostálgico de um passado remoto.Aquele velho piano de calda era o que sobrara de um tempo sumptuoso cujo o presente não fazia jus.

Não reconhecia seu lar na casa de repouso.Os sofás uniformes, o tapete manchado sem histórias particulares e os estranhos que a habitavam. Era ali, somente sentada ao banco do piano,que ela sabia ter em mãos a grande e única testemunha de sua vida.

A hora passava ligeira, e o antigo relógio de madeira em cima da lareira parecia não ser seu aliado, 0 passado parecia não ter mais lugar no presente.Com muita tristeza olhou suas mãos, agora enrugadas, e não mais cheias de vida. Levou-
as ao rosto e confirmou sua melancolia.O tempo de fato não lhe fora amigo, mais efêmero que as águas do rio que corria sem muito alarde, e pouco a pouco carregara seu viço.

A imortalidade juvenil havia passado, e o que havia sido construído além de um buraco vazio? A música que fora seu conforto agora se tornara sua punição, a melodia à acusava por sua frivolidade e não havia saída.Hoje mais do que nunca se sentia refém de suas escolhas passadas,aquela que cativava olhares opacos de piedade.

O relógio enfim parou.Suas mãos não mais enrugadas tocavam a madeira nova de seu piano que já não ficava mais em uma sala vazia, estava agora no grande teatro e os aplausos eram infinitos. A chegada do fim a tornara para sempre imortal.




domingo, 10 de outubro de 2010

Redenção

Veja, é chegado o triunfal dia,
O esguicho frívolo de piedade
No rastejo perspicaz da enguia,

Do erro o pior comete,
Traístes a ti, pobre vazio cativo
Tornado marionete,
Negas teu desejo furtivo

Seu extinto crédulo o acometeu,
Destruído o império cético
Prova o verdadeiro apogeu,

Vem a temer o incoerente
Medroso, desperdiçaste a vida
Em ritos de forma obediente.
Ignoraste a si e toda complexidade aferida.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Arte excêntrica. pt.3















Ainda chocada com o ocorrido me dirigi até o interfone, perguntei ao porteiro se havia passado alguém por ali mais cedo, o pobre infeliz assustado com minha pergunta ríspida e meu tom esbaforido, respondeu que não se recordava de ter visto ninguém além dos moradores.

Resolvi então que precisava tirar isso da cabeça, então logo me sentei em frente da televisão para assistir as notícias.Ao fim da reportagem sobre os efeitos da nova crise, o âncora anunciou um crime bárbaro ocorrido na noite anterior, envolvendo a imitação ou como dito por ela, a "sátira" de uma obra de arte.

O crime parecia retratar O Esqueleto Pintor -1896/97 de James Ensor , havia um corpo apoiado em um cavalete principal e outro jogado a sua frente como o modelo. Apesar do notável horror da obra havia uma certa beleza, os detalhes eram tão fiéis a obra original,e eu como dona de um atelier de arte garanto que minhas críticas são de fato bastante precisas neste aspecto,chegava a ser assustadora a maneira como a alma de James Ensor , com toda sua marginalidade e solidão tivesse sido retratada no sangue jorrado.

A arte é apenas o grande espelho da sociedade, através dela interpretamos pensamentos, comportamentos e os desejos mais sórdidos de cada período que vivemos, e isso agora me intriga. Será essa a forma pela qual as pessoas se interessam por algo além do seu próprio mundo hoje? A brutalidade é o único sentimento que nossa sociedade capta?

Parece-me que neste mundo não há mais lugar para subjetividade, não há mais ser algum sensível o bastante que seja capaz de interpretar sentimentos, há que ser escancarado para ser compreendido. Frases feitas e sutis não convidam ninguém a pensar, experimente ao contrário, diga-lhe que sua morte não basta de um ritual orgânico do qual todos estamos submetidos, um caixão frio e sem cor será seu único destino, não há nada do outro lado a não ser um vazio. Uma grande ironia, um vazio tão cheio de supérfluos materiais que te alimentaram tanto tempo.



sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Arte excêntrica. pt.2

Li novamente o bilhete e naquele momento parecia que saira de mim por completo, vieram repentinamento à tona vagas lembranças do meu sonho.

Era um enorme corredor escuro,ouvia-se ruídos de ratos e de tábuas que rangiam a cada passo,as paredes tinham papel desgastado, sujo; ao fundo uma janela com vitral colorido onde permitira a passagem fosca de luz,um tanto turva. Esta luz tinha um ar misterioso e apesar de tímida, me atraia de forma natural,como um abutre é seduzido pelo cheiro de carne podre.

De certo não estava consciente, era uma força maior que me levara ao final do corredor onde havia uma porta entreaberta, minha curiosidade me fez espiar pela fresta ; foi quando vi uma jovem de avental branco e dois homens jovens caidos ao chão, me aproximei um pouco mais para entender a cena mas a moça de avental levantou a cabeça rapidamente em minha direção. Esta é a última coisa que me recordo.

Voltei a mim mas ainda não tinha total controle sob mim mesma, minha cabeça involuntariamente não parava de fazer perguntas - seria mesmo só um sonho?

(continua)

Arte excêntrica. pt.1

Acordei com o barulho das finas gotas de chuva resvalando sobre o parapeito,esta emitia um som baixo, suave, quase ritmado que acabara incomodando pela ausencia de variação em seu enredo.

Logo em seguida abri os olhos e me veio de imediato uma sensação de confusão,acabara de sair de um sonho onde certamente não havia estado em meu quarto, se quer em minha casa. Acompanhei os móveis vagarosamente com os olhos até meu cérebro associar que estava naquele momento de fato apenas em meu quarto, um lugar comum a minhas lembranças.

Não lembro ao certo o que havia visto no sonho que me fizera acordar tão perdida, recordo-me apenas de ter recebido na noite anterior uma ligação estranha que beirava meia noite.A voz que estava do outro lado da linha não era clara,só conseguia ouvir uma respiração ofegante, que pela rapidez com que oscilava parecia ser de alguém assustado ou nervoso.

Sentei-me na cama e passei a mão sobre meus olhos para que pudesse me livrar das remelas que tapavam a visão até o banheiro, um pouco zonza me posicionei em frente a pia, ainda de cabeça baixa espreguicei-me em uma tentativa vã de espantar a preguiça.Ao fim de outros rituais com intuito de despertar fui até a cozinha preparar um café forte, no caminho até a geladeira notei por debaixo da porta dos fundos um envelope branco, ele refletia diretamente em meus olhos a pouca luz do sol que conseguia sobressair por de trás da chuva,era liso e sem nome.

A curiosidade imediatamente dominou-me por completo, quem poderia ser tão pretencioso a ponto de deixar-me uma carta sem se identifcar? e o que pretendia com isso? me assustar?, em menos de 1 minuto minha mente foi oprimida por milhares de perguntas sem resposta.Decidi então pegar o envelope. Era uma citação, dizia apenas: "O Essencial da arte é exprimir; o que se exprime não interessa" [Fernando Pessoa].

(continua)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Nostalgia poética

Invejo os poetas que, como dom natural possuem o poder de se fazer entender por meio das palavras como seu instrumento. Palavras, as quais traduzem os sentimentos desnorteados que habitam o campo do abstrato, dando-os forma e sentido, admitindo-os com tal naturalidade e praticidade que nos faz acreditar erroniamente que trata-se de um trabalho simplório.

Simplório, se ignorarmos o fato de que aceitar o sentimento é tão árduo quanto reconhece-lo, tendo a consciencia de que há um limite ténue entre dois extremos, principalmente ao tratar do que sentimos, o ódio e o amor, por exemplo são facilmente confundidos.

O processo de reconhecimento do sentimento é complexo simplesmente porque o consciente só expõe o sentimento polido, que passa pelo subjugo da razão e da reflexão humana, esta é guiada pelos estereótipos propostos pela sociedade e pelo ego, deixando no subconsciente o rudimentar, que ainda não foi afetado pela censura.

Os sentimentos e também os pensamentos não são genericamente livres, já que os pensamentos, assim como os sentimentos tendem a passar por uma seleção do consciente por meio de censuras e logo, os sentimentos são regidos pelos pensamentos.

Por fim não é mais possivel ser dono de si mesmo por completo, você é movido a padrões e lições externas que invalidam sua real essência, tendo que cumprir exigências e censuras que você mesmo estipulou,que ironia, para não fugir a realidade em que vive. Torna-se movido a padrões sociais; movido a razão, deixando de agir por impulso, deixando de valorizar o seu rudimentar, a intuição inerente.

Há quem diga que ao nos afastarmos de nossa herança primitiva estamos nos tornando mais civilizados, o que pra muitos retoma a idéia de evolução, mas o que de fato não avaliamos, é a perda não só do instinto como também o ganho de um vazio e mecânico que criamos, não pensamos por nós, não sentimos por nós, adaptamos e apropriamos os sentimentos e pensamentos pré-existentes para nos moldarmos ao padrão.

No entanto, é por esta libertação que invejo os poetas, estes não se apropriam, transformam a matéria bruta sem perder a essência.


















texto e imagem por Tatyana Elia